A exposição “Á Beira da Metamorfose” aconteceu na galeria de Arte “Alcindo Moreira Filho”, no Instituto de Arte da UNESP. O projeto foi selecionado pelo programa de exposição do departamento de artes por meio de uma Comissão formada por professores e funcionários do Instituto.
Abaixo deixo como registro um pós-release e em sequencia, discuto as obras que integraram a mostra, o texto de apresentação, e pensamentos sobre o espaço expositivo e a união de trabalhos na construção de uma unidade.
Deixo aqui meus agradecimentos especiais às colegas Aline Bombardi e Williana Silva que ajudaram na montagem final e a amigos, curadores e professores que foram visitar a exposição em outros momentos e deixaram suas devolutivas!
Diogo Nógue expõe seleção de trabalhos recentes em mostra no Instituto de Arte da UNESP
A exposição “À Beira da Metamorfose” apresenta uma gira dos trabalhos mais recentes de Diogo Nógue, artista negro periférico que se inspira no simbolismo e no afro-surreal. Acervo disponível de 02 a 12 de maio.
A Galeria de Arte “Alcindo Moreira Filho”, localizada no Instituto de Arte da UNESP, recebeu a exposição “À Beira da Metamorfose”, do artista Diogo Nógue, durante o primeiro semestre de 2024. A mostra, resultado da seleção de um júri de professores, selecionou outros cinco projetos de exposições que se alternaram durante os meses seguintes.
A abertura da exposição foi marcada pela participação especial de Katia Souza, que preparou alimentos ancestrais para o evento. Katia é conhecida por sua atuação na Exposição Encanto Arte Vivência da Afro-diáspora, realizada em Suzano em 2023. A noite de inauguração também contou com a presença de artistas e curadores, incluindo Pri Wi, Daniel Ramos, Antônio Pulquério, Sergio Adriano H, Rafaela Jemine, Renato Almeida e o escritor e curador André Aureliano Fernandes.
Texto de apresentação
“Mas o seu poder está assente
Adquirido
Requerido
As minhas mãos mergulham na urze
Nos campos de arroz.
Possuo uma cabaça de estelas fortes.
Mas sinto-me enfraquecer.
Ajude-me
Encontro-me à beira da metamorfose
Afogado e cego
Com medo de mim próprio, assustado comigo.
Vós deuses…não sois deuses. E eu sou livre”.
Aimé Cesáire
E os cães deixaram de ladrar p. 50
O trecho acima, texto da peça teatral de Cesáire, é citado por Frantz Fanon em seu livro “Pele negra, máscaras brancas”. No capítulo “O negro e a psicopatologia”, onde relaciona estudos da psicanalise e filosofia colonial com o de autores negros para tentar “explicar a visão de mundo do homem de cor”. Estes encontros convergiram no momento desta mostra, ao voltar para o ambiente acadêmico, sendo os versos de Cesáire a dar nome a ela.
A seleção aqui apresentada traz, como ponto em comum, a representação do corpo e suas interações com o mundo ao redor. Separados por séries, as imagens se constroem e se conversam pela fragmentação, sobreposição de linguagens e símbolos. Desenvolvidos a partir de 2021 reúnem reflexões e processos do início de minha carreira até o presente.
Dentre eles, a acumulação e apropriação de imagens, assim também como uma relação próxima com a literatura.
A linguagem principal no meu fazer é o desenho, talvez pela ilusão de dominar e compreender a natureza que nos cerca, de criar realidades que sonhamos ou que nos assombra. A magia das linhas, manchas e texturas permitem a produção de encantamentos que nós, humanos, utilizamos desde o princípio.
No estudo do desenho, através das técnicas clássicas, naturalmente somos educados pelos chamados “Grandes Mestres da Arte” e esse mundo de imagens constroem um repertório imenso para pessoas brancas. Possibilidades de se verem e se idealizarem como quiserem.
Porém essa realidade construída exclui pessoas negras, ou as utiliza como antítese da humanidade, beleza e moral.
A partir desse entendimento, começo a buscar outras linhagens da arte e relacionar os conhecimento produzido através do processo colonial para repensar a imagem do homem negro, refletindo sobre essa subjetividade construída pelo trauma do não pertencimento.
Contrapondo a impotência da violência imposta por uma busca de potência em conhecimentos ancestrais; Justapondo os validadores da ciência com encantamentos; Tencionando a sacralização do espaço expositivo com a transposição de elementos do sagrado mundano; e por fim, referenciando e dialogando com Octávio Araújo, Mestre Didi, Sidney Amaral e Rosana Paulino. Eu sou, porque nós somos. Ubuntu.
Sobre os trabalhos
Série “Desconversando o Eu” 2013 -2024
Nesta montagem pretendi explorar a composição em módulos, buscando a narrativa pela sucessão de imagens. Relacionando dois momentos diferentes desse pensamento sobre a construção do corpo e sua relação com seu entorno, existe um embate entre imagens de violência e de esperança, de uma nostalgia e angustia, versos idealizações, as vezes positivas, ou negativas dessa ideia de corpo. As hachuras feitas em caneta técnica trazem uma linha expressiva, uma dureza e mistério para as imagens construídas, remetendo a representações de quadrinhos em alguns momentos.
Série Quem matou Basquiat? 2018 – 2024
A pesquisa iniciada nesta série é um processo disparado pela visita ao museu de Inhotim e também a mostra de Jean Basquiat em 2018, a partir desse momento, começo a refletir sobre todo o processo de ser artista negro em território brasileiro, a arte como poder, e como a colonialidade opera nossa percepção de mundo. Ponto importante em minha produção, o processo de construção dessas imagens serviram como reorganizadores do meu pensamento artístico e levaram a questionamento sobre ser um artista negro na afro-diaspora, as formas de linguagem e comunicação, e as origens das imagens e como suas formas de representação transmitem significados.
Série Herbário do cuidar, vingar e refazer
Utilizando o suporte do pano-de-prato para mesclar conhecimentos ancestrais, assim como formas de expressão artísticas fora do pensamento eurocêntrico de arte, assim como a colonização da ciência sobre os saberes empíricos e visão mágica da realidade para estimular a criatividade e fabulação. Unindo a literatura e as linguagens da escrita, seus usos científicos em contraste com o uso diário, em recados, bilhetes e relatos são expressos nos diferentes desenhos tipográficos das letras, mas também nas relações entre o português, latim, tupi-guarani, banto e iorubá. Cada desenho de erva, seus usos para banhos, simpatias, curativos, afetivos e de encantos, falam de uma origem de território, das lutas e resistências de povos violentados, das migrações de populações e da transmissão de saber geracional. As marcas de uso dos panos, assim como os crochês que emolduram os desenhos e escritos falam de um cuidado, uma expressão de carinho e preocupação estética presente em mãos que presam pelo alimento, o sabor, mas também pela beleza.
Série Negro sobre vazio branco – 2020 – 2024
Nesta sequencia de desenhos através de quatro elementos básicos da linguagem e do sistema de arte, jogo com questões complexas e profundas. Partindo da questões racialidade (negro, sobre branco) o carvão, mineral, natural se torna elemento que constrói a existência do corpo retratado pelo contraste com o papel de origem italiana e branco. O vazio do suporte é presença que conversa diretamente com a figura. Assim como o espaço expositivo, e a relação do corpo fruidor com o corpo retratado, transforma e adiciona camadas de leitura para o trabalho.
Criado inicialmente como parte da série Desconversando o Eu, onde a partir das linguagem do desenho e da pintura pretendia investigara subjetividade do artista homem negro no contexto de violência do território em que sou refém. A série Negro sobre branco pensa a relação do individuo-o e sua corporeidade, sua carga psicológica e sua percepção de si e do entorno como determinantes da sua condição de existência.
Composição II – Casas ao longe ( Oya – Uruçu – Ina Aye)
A instalação “Composição II – Casas ao longe (Oya – Uruçu – Ina Aye)” é uma continuação da obra “Composição I – Uruçu, Águas de Yemanjá, Adupé”, que buscava responder criticamente à história oficial de Suzano, que frequentemente destaca o progresso trazido por imigrantes italianos e japoneses, enquanto omite as contribuições significativas dos negros e indígenas. Esta omissão histórica reflete uma narrativa incompleta e excludente, ignorando as ricas contribuições culturais e sociais destes grupos para a formação da cidade.
Já nesta nova montagem, em outro contexto, dialogo com minha recente reintegração ao ambiente acadêmico, usando a mostra como uma oportunidade de apresentar e refletir sobre o meu percurso. Com os objetos, adquiridos em lojas de artigos religiosos em Suzano, cidade onde nasci, e no bairro onde atualmente resido, Vila Curuçá, dialogo com a ideia se sacralizar um novo território, e com a oferenda, pedir licença aos orixás para abrirem minha passagem.
A instalação incorpora ideogramas Nsibidi, uma forma de escrita pré-colonial originária da região nigeriana, que também se espalhou para o Haiti e o Caribe através das religiões afro-diaspóricas. O símbolo desenhado com pemba no chão, que significa unidade, serve como a base da composição, ancorando a instalação em um contexto de coesão e interconexão.
Acima deste símbolo central, a instalação apresenta elementos alusivos aos itãs (narrativas sagradas) e às simbologias dos orixás Exu e Oxóssi. Exu, o mensageiro dos orixás e guardião dos caminhos, e Oxóssi, o caçador e protetor das florestas, são representados de forma alegórica, contribuindo para uma narrativa visual rica e multifacetada. Esta escolha não é arbitrária; cada elemento foi meticulosamente pensado para criar uma composição que ressoa com as práticas religiosas e culturais das comunidades afro-diaspórica. Sua presença no espaço expositivo, templo eurocêntrico da arte, procura uma volta ancestral e valida fazeres das culturas que foram sufocadas durante os últimos séculos.
Tríptico Corpo Desencanto – 2024
Antítese da pintura Corpo Encanto, dialogando com Negro sobre Vazio Branco pelas relações do corpo e suporte, com Desconversando o Eu pela fragmentação e narrativa. Estas novas pinturas são estudos de técnica, estilo e apresentação no espaço. O ato de pintar em óleo sobre tela, tradicional na história da arte europeia, foi tida como expressão maior de arte e sofisticação cultural. Através dela e da escultura em mármore, se canonizou o culto ao corpo torneado e a beleza anatômica e muscular para o homem branco. e o corpo esguio e curvilíneo para as mulheres. Porém, as imagens que trago, vão na contramão dessa tradição, e mostram um embate da racionalidade contra a natureza indo ao extremo. O Cenário, abstrato e expressivo, contrasta com o tratamento dos assuntos, e ao mesmo tempo ditam a atmosfera do vazio, efêmero, antinatureza.
Negando toda a construção de trabalhos como Herbário, Composição II, o aculturamento máximo e massificação eurocêntrica são temas centrais, uma distopia concretizada. Inverto o papel, tornando a cultura eurocêntrica, o outro que eu objetifico e reduzo à estereótipos.
O momento de expor como ultimo ato de metamorfose
Fazer a curadoria dos trabalhos, pensar suas disposições no espaço expositivo, e como cada uma delas poderiam dialogar no discurso geral da mostra, foi muito importante para a sequencia da minha pesquisa.
Os trabalhos reunidos aqui, foram apresentados em separado em outras mostras no inicio do ano, e pela primeira vez, algumas delas estiveram juntas para montar um pensamento que foi fragmentado em tempos e fazeres distintos, contextos diferentes, mas que guardavam algo em si, que permeou os caminhos que todas percorreram até ali.
A exposição, em contexto da minha pesquisa de mestrado, serviu para escurecer algumas percepções, organizando pensamentos. Porém, mais importante, foi apresentar todo esse pensamento para a comunidade, colegas artistas e receber devolutivas de tudo que foi apresentado.
Registros da Abertura
Agradeço a Caroline Paixão e Raquel Santos pelos registros da abertura.