Ser ou não ser um “artista negro”?

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* imagens da capa são obras do artista Sidney Amaral

A algum tempo me descrevo em textos, pesquisas, entrevistas, projetos e nas redes sociais como um artista negro. Porém antes de assumir este “titulo” eu era alheio a ele.
Nunca tinha parado para refletir sobre esse termo, o que significa e o peso que traz. Nem mesmo na diferença de escolhe-lo conscientemente ou ser atribuído por outros.

Enquanto no primeiro caso esta adoção simboliza um posicionamento político e artístico, no segundo se torna um rótulo para retirar ou agregar um valor.
Esta questão ficou muito tempo em segundo plano no Brasil, país da falsa democracia racial, mas também no mundo. Nas artes visuais poucos artistas chegaram ao status de geniais ou de grandes nomes.
Mesmo os que fazem sucesso precisam ter a sorte de se infiltrar no sistema regido pela branquitude e, para isso, é necessário “jogar o jogo”.

Jogando o Jogo

Nesta realidade o artista se permitir inserir ou ser cooptado pelos circuitos da arte regidos pela branquitude e residir na ambiguidade.
A produção desse artista não deve ser considerada combativa ou falar diretamente das questões delicadas como racismo, desigualdade, massacre e violência contra seus irmãos.

Para ser aceito, esta arte tem que ser passível de ser admirada pelos brancos sem causar desconforto, ou que cause de maneira suave. Mesmo que apenas no começo.

Obra da artista Rosana Paulino

Podemos pular a questão do fim da escravidão e etc, e ir para os anos 70. Nessa altura grandes líderes negros já tinham espalhado suas sementes e morrido, Garvey, Malcom, Luther King… Os Estados Unidos eram nesse momento a potência que ditava a cultura com seus filmes, músicas, artistas plásticos e críticos. Na música a formula já era conhecida: Se um artista preto for bom, podemos nos apropriar da sua arte regravando com um artista branco, se ele for um gênio nós daremos a ele uma carta branca – E se o artista negro seguir direitinho as regras do jogo ele será elevado ao patamar de Ser Humano, como um branco comum.

Acontece que muitos artistas não vão se contentar em jogar o jogo. É menos desgastante fingir que o racismo não existe, porém ainda assim é sofrido, o outro caminho é enfrentar a realidade. Como exemplo nas décadas anteriores (50-60) podemos citar Nina Simone.
Mas é nos 70 que as sementes plantadas começam a florescer, e a genialidade de alguns artistas negros vão mudar a cultura pelo mundo.
Bob Marley, Michael Jackson, Prince, Tina Turner, Grace Jones, Muhammad Ali, Pelé, Blaxploitation e a lista segue. Esses frutos empoderam os movimentos pretos e lançam outras sementes.

Barrados na Galeria

Já nas artes visuais com “A maiúsculo” poucos conseguiram furar a bolha da segregação, tendo Basquiat como um icone abraçado nesse panteão inalcançável. No brasil então… o negro foi mais tema que sujeito, tendo em Emanuel Araújo o trabalhando, não só de artista, mas também como pesquisador, curador e colecionador, deixar sua produção marcada na história e resgatar alguns nomes que ficaram esquecidos.
Não que esses artistas negros e negras não estivessem lá. Mas sua produção estava ligada a algo prático, no sentido de ser empregado em seu meio (religião, capoeira, utensílios, roupas, esculturas e pinturas pequenas ou paredes e letreiros).

Basquiat em frente as suas obras.

A Arte, megalomaníaca, queria pinturas enormes… saindo da art pop e minimalismo (que usavam materiais caros e auxilio de maquinas industriais) e indo para land-art.

Em outras palavras, o circuito de arte nos barrava pela forma, conteúdo, origem e financeiramente. Delimitando na música, esportes e raramente no teatro/cinema/dança o lugar onde nossa representação no mundo era permitida.

Cada artista negro vai jogar o jogo a sua maneira. Podemos notar na trajetória de Basquiat esses dois momentos: o primeiro, quando é assimilado ao circuito de arte pela excentricidade de ser um artista de rua, questionador do meio; no segundo, se afirmando como um artista negro, depois da morte do grafiteiro Michael Stewart que foi preso e espancado por policiais de Nova York. Ele diz “podia ter sido eu”.
Basquiat foi cooptado pela cena do capital artístico, e usado como produto. Talvez, cego pelo sucesso e por romper a bolha da segregação tenha se perdido. São vários os estudos e relatos que falam do racismo e como isso o incomodava. Nas fotografias com suas namoradas e galeristas podia se ver solitário em um mundo de brancos. Na sua trajetória de alguns anos, saiu do anonimato e de viver nas ruas para a fama, porém vivendo de favor, produzindo para ricos ficarem milionários. Se tornando paranoico, tomado pela insegurança de perder o pouco que tinha e terminando, tragicamente, lavado pelas drogas.

Não era incomum sua expressão de deslocamento.

É possível se negar?

A sociedade hegemônica branca nos faz pensar que é possível viver fingindo que a barreira da cor não existe. Para isso eles criam brechas e roteiros, que se forem seguidos, podem talvez, te dar a “carta branca” do jogo.
É possível negar grande parte do que somos enquanto humanos nessa realidade. Usar nosso talento e nossa visão de mundo com um recorte que elimine grande parte da nossa psique, nosso legado e adotar a visão eurocêntrica de mundo.
Produzir arte segundo as tradições acadêmicas, nos dedicar a ilustrar e escrever livros com personagens brancos, alimentar a ideia criada por eles de beleza caucasiana e etc em busca de reconhecimento. Não vejo esse caminho como uma escolha, e sim como sintoma de patologias profundas. Se apagar, criar uma autoimagem que nega sua origem, ou se aproveitar das brechas (pele clara por exemplo) para tentar se infiltrar num meio que não te quer é doentio.

Michael Jackson e sua transformação.

Ser um artista negro

Os grandes nomes dos anos 70 se tornaram lendas nas décadas seguintes, abrindo a porta para novas gerações ao criar a imagem do artista e atleta negro. Por outro lado, a branquitude cuidava para que não se ultrapassasse esses nichos.
Vários iriam repetir a trágica carreira de Basquiat, outros conseguiriam criar seus alicerces e se colocar como financiadores de novas gerações de irmãos e irmãs. Em grande parte, a ingenuidade tinha acabado e isso vai ser refletido na produção dessa geração.

Ser um artista negro, em primeiro lugar, é não se esquecer por nenhum segundo que vivemos em uma sociedade racista de domínio branco. Partindo disso, conhecendo as regras do jogo, você busca sua ancestralidade, se reconhecer e recontar a história do povo preto.
Com os olhos abertos, sabemos que não devemos nos virar para a Europa em reverência, nem engolir seus livros de história onde são protagonistas.

Como artista negro, o seu papel é trazer o protagonismo para você, seus sentimentos, sua visão de mundo, dos seus.
Esta visão é totalmente diferente da que estudamos nas escolas e academias, que vemos em filmes e TV. A nossa visão como artista negro é um território que foi apagado, diminuído e esquecido. Não devemos renegar nossa ancestralidade para ser aceitos como Seres Humanos embranquecidos (as vezes literalmente) pela branquitude.

Pelo contrário, é um caminho de empretecimento, de busca de conhecimentos e da história dos nossos ancestrais; das nossas línguas, filosofia e territórios. Nossa construção imagética e social.
Se reconhecer um artista negro é não se preocupar em seguir o roteiro, e as delimitações impostas pela branquitude, na tentativa de ser assimilado. É uma busca de ser relevante para os seus, em respeito aos que lutaram pela vida para que sua existência fosse possível de uma maneira um pouco mais digna.

Escultura de Emanuel Araújo

Esta escolha pode, em alguns casos, te fazer quebrar a bolha e ser aceito pela hegemonia branca. Não é novo como eles nos transformam em produtos exóticos e lucram em cima disso, porém se sua arte for afrocentrada e buscar o enriquecimento e valorização de nossos irmãos, seremos os semeadores das gerações futuras.

Não se ver como arte menor

Nesse caminho é importante não se ver como uma arte menor ou alternativa. Somos Arte e ponto. A nossa Arte, nossa narrativa e nossa existência.

Esse entendimento deve partir primeiramente de nós mesmos.

Usando as brechas do sistema, atualmente vemos surgir exposições sobre artistas pretos. Suas curadorias, algumas vezes, vão selecionar trabalhos que falam da escravidão, pós-abolição e a atualidade, apenas como críticas políticas, sociais.
Esses trabalhos são importantes sim, porém não podemos esquecer que não somos só sujeitos que sofreram a interferência e massacre da branquitude.

Temos nossa filosofia, nossas relações sociais e espirituais. Somos seres com nossas imagens, símbolos, e tradições artísticas. Podemos discutir amor, solidão, medo e também a beleza de nossa existência que é riquíssima e variada.
Devemos pela arte recuperar, de uma vez, nossa humanidade. Nos colocar enquanto corpo humano e, em nossa complexidade, nos enxergar como tal.

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