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Rosana Paulino – Arte afro-brasileira e africana em diáspora.
Artista negro e sua época
Rosana Paulino é uma das artistas mais importantes das últimas décadas para se pensar a arte no brasil, sua força e primazia na articulação entre imagens e o espaço expositivo são algumas das características marcantes de sua pesquisa, que, mesmo sem investimentos e financiamento do mercado ou do sistema de arte, segue em produção ininterrupta e pulsante.
Sua importância se dá não apenas por trazer para o campo da arte contemporânea discussões de linguagens e técnicas inovadoras, mas também por sua existência ser o resultado da luta secular dos africanos da diáspora. Não foi fácil sobreviver nesse território que, por consequência do colonialismo e capitalismos, chamamos de Brasil.
No texto da exposição “Encanto: artevivência da Afro-diápora” recuperei a reflexão filosófica sobre como pensamos a realidade a partir de uma cultura da comunidade. E a partir dessa discussão, como o racismo estrutural e a colonialidade moldam nossa percepção de mundo.
Neste processo, enquanto artistas negros ao longo da história da arte brasileira, vemos que o contexto e construção de conceitos e letramentos para a compreensão de mundo em que somos forçados a sobreviver, ditam também tecnologias e estratégias daquele período para combater preconceitos, ou alcançar relativa liberdade.
Quando pensamos nos artistas negros do 1800, como por exemplo Estevão Silva, ser artista era dominar os cânones da academia. Os que assim faziam eram portanto superiores, dotados de uma aura que abrilhantava sua humanidade e como eram vistos pela sociedade. Por outro lado, as pessoas negras eram ditas como sem alma, não humanas e com intelecto inferior perante um homem branco.
Dessa forma, para combater essa narrativa, um homem negro devia mostrar sua capacidade de civilidade, inteligência e humanidade no mesmo território de disputa que era posto pela sociedade violenta, antiética e escravocrata da época. Como a história nos conta, Estevão mesmo ultrapassando esse domínio e dito o melhor pintor de natureza morta entre seus pares da academia, não é condecorado como tal, pois ao fazer isso, o sistema racista estaria se contradizendo.
O domínio da Técnica
Um desafio semelhante se apresenta a Rosana Paulino, em uma outra academia. Com dificuldades adicionais, é uma mulher negra em um ambiente da supremacia do homem branco, que se fundamenta em literaturas criadas por outros homens brancos; que constroem a realidade a partir da visão deles de mundo.
Como estudante no curso de artes na mais conceituada universidade brasileira – (USP) em um momento de transição na política. Rosana conquistou com seu trabalho e inteligência aliados importantes que colocariam suas pesquisas artísticas em destaque.
Em contexto artístico mundial, e com uma sensibilidade acurada no olhar, Paulino encontra uma fresta para trabalhar a imagem de pessoas negras de forma potente, utilizando a investigação da fotografia e transferências de imagens nos processos da gravura.
Para ser um artista neste período no Brasil, era preciso o domínio de alguma técnica, ou ser de famílias com capital social, cultural ou econômico relevante. Ainda hoje, é muito caro para um artista desenvolver pinturas e esculturas em medidas e materiais apreciados pela história da arte europeia. Assim como os cursos para desenvolvimento das técnicas acadêmicas de representação. O outros caminhos eram ter os contatos certos, estar na academia, e performar a identidade do artista.
Rosana vai encontrar na presença simbólica da fotografia e no domínio da técnica atrelada ao desenvolvimento teórico e intelectual da academia, uma base sólida e incontestável para inserir sua produção no circuito artístico contemporâneo nacional e internacional.
Contexto Politico
Na década de 90 o Brasil ainda fingia viver a democracia racial e social na produção cultural. Mesmo que nas novelas da Globo, principal parâmetro da época, quase não se via pessoas negras a não ser nas novelas de época, romantizando o período escravocrata, ou em papeis de bandidos, empregados e subalternos.
Porém o movimento negro em diferentes frentes, ia contestando essa estrutura racista, e causando constrangimento para a branquitude.
Contra tudo e contra todos, famílias negras estavam conseguindo colocar alguns de seus filhos na universidade, estudar era a via mais segura de escapar ao extermínio, mas não garantia nada.
Desta forma, era impossível ignorar a produção de Paulino, e nem ao menos podiam diminui-la, já que a artista dominava os parâmetros exigidos pela sociedade branca. A escrita de uma pesquisa e domínio da base teórica europeia (Impediam de taxa-la de Naif); O domínio da linguagem e da técnica em coerência com um discurso atual e potente a tornavam impossível de desqualificar enquanto produção de arte contemporânea.
Ao longo de sua produção, Rosana Paulino evidencia estratégias de produzir arte enquanto um artista negro que passa inicialmente por uma arte afro-brasileira, mas que aponta ao meu ver, para que artistas negros produzam uma arte africana da diáspora.
Tendo como objetivo, talvez em um futuro, que possamos ter uma nacionalidade e identidade de território que não seja marcada pela violência colonial. Mas sim, uma reconstrução cultural e simbólica, resgatadas por nós e para nós, pessoas negras e indigenas.
A cultura Hip-Hop e a denuncia
Como Rosana mesmo diz em entrevistas e palestras, não tinha referências enquanto mulher negra, de outras artistas e pesquisas no Brasil ou fora dele. Num período pré internet, era muito difícil conseguir informações.
Aa tradição academia, exige um ancoramento bibliográfico, seja na história da arte europeia ou em teóricos das ciências acadêmicas. Desta forma além de textos de antropologia, biologia e história, Rosana vai encontrar no movimento Hip-Hop e no Rap, conceitos que levará para a sua arte. Discutir de maneira direta as contradições do Brasil, o racismo e a violência contra as mulheres. Remixando imagens e comentando a história oficial brasileira, ela supre esse dogma de referenciar a história da arte ou do país, para contextualizar sua produção.
Por outro lado a arte de Rosana rompe nas palavras dela “a estranha paz sobre racismo na da arte brasileira”, ao mesmo tempo que vai na contra mão das produções que as galerias e museus queriam consagrar naquele momento. Como exemplo os neoconcretos, a arte de uma classe média branca higienizada, camuflada por cores, formas, geometrias de um Brasil que saiu das trevas da ditadura.
Sem dúvida, esse período da produção de Paulino é uma arte afro-brasileira, misturando o patuá, crochê e o bordado com a imagens de pessoas negras, utilizando a história dos objetos e das imagens para compor sua poética. Além das questões políticas, seu trabalho explora a arte no campo expandido, instalação, e processos complexos de produção de imagens e conceitos simbólicos.
Explicitar o obvio, de maneira direta, se preocupando com a forma e conteúdo, mas sem rodeios, o papo reto, da cultura Hip-Hop, é um dos fatores que torna o trabalhos iniciais de Paulino tão certeiros quanto um Rap dos Racionais. Porém, por ser uma denúncia feita por uma mulher negra, também vão dizer que esta é uma arte indenitária. O que não se diz é que toda arte feita por um homem branco é indenitária e muitas vezes supremacista.
O corpo negro e a violência fotográfica
É inevitável a relação da fotografia e a violência junto ao corpo negro, e como essa linguagem é um dos poucos registros históricos que temos de nossos antepassados. Assim, ao mesmo tempo que essas imagens constroem uma simbologia da desumanização do sujeito negro que é perpetuado no lugar de sofrimento, punição, e roubo da dignidade. Também são nosso terreno de pesquisa sobre o que fomos e de onde viemos.
Ao longo de nossas vidas, o registro de nosso retrato é feito para adentrar no sistema do racismo estrutural do estado brasileiro. Desde a foto do RG, carteira de trabalho, fichas criminais. Porém, muitas famílias negras, a minha por exemplo, dão grande valor ao registro fotográfico. Esta tentativa de evitar o apagamento da nossa história, de preservar memórias, vem muitas vezes do medo desse passado apagado. Enquanto a supremacia branca busca eternizar o individual e separando indivíduos como acima da média. Nossa preocupação é em preservar a história de pessoas comuns, a história dos marginais e normais, são o registro de uma força e resistência de gerações de pessoas negras que lutaram para recuperar o mundo para seus futuros descendentes.
Fora desses momentos em que a fotografia é usada para formatar o sujeito negro: as fotos de nascimento; batizado; aniversários; casamento – são momentos em que as pessoas negras usam para construir a própria memória e a construção da própria história.
É essa mescla que o trabalho “Parede da Memória” nos traz. O deslocamento da imagem de uma foto 3×4 do universo da padronização de um documento, para a aura única de uma obra de arte. As fotos de batizado e de registros de nascimento que geralmente ficam guardadas em caixas em fundos de guarda-roupas ou gavetas, para a parede de um espaço expositivo público.
A presença da fotografia e seu fator indicial que traz a presença física e factual da existência daquelas pessoas. Apresentadas em espaços que até hoje são frequentados em sua maioria por pessoas brancas, aqueles olhares encarando esse público, é incomodo e denuncia a violência, apartheid e tentativa de apagamento contra nossa população.
Assentamento como ressignificação da violência
Nos trabalhos dos anos seguintes como a instalação “Assentamento” Rosana Paulino vai resgatar a imagens de pessoas negras registradas em momentos de violência. Imagens criadas para afirmar uma desumanização de africanos e utilizadas em pseudociências como a Frenologia.
Paulino ressalta que nesses trabalhos ela propõe a reconstrução desse sujeito em um novo território, mas que essa reconstrução é marcada pelo trauma, por uma sutura que é feita: Pelo lado do colonizador, para arrancar o máximo de força de trabalho daquele ser humano objetificado. Já pelo escravizado, uma luta por sobrevivência, necessidade de se reconstruir para alguma esperança de futuro.
Criando novas imagens, a partir de um repertório simbólico criado pelo colonizador, o trabalho de Rosana propõe uma reinvenção, busca dar para aquele sujeito retratado uma nova vida, uma existência para além das violências impostas por seus algozes. O resgate da mulher objetificada. Um outro mundo para aquela personagem.
Essa abordagem de ressignificação e uso do corpo negro como provocador contra o apagamento e a pacificação do discurso, vai encabeçar e abrir caminho para uma nova geração de artistas negros, que vão disputar o espaço simbólico da arte e problematizando a ideação de Brasil, brasilidade e de brasileiro. Utilizando essa abordagem da arte afro-brasileira, esses artistas vão trazer nos objetos e materiais artísticos a ligação ancestral e o corpo como presença representativa.
Ironicamente, essa abordagem vai trazer uma crítica racista: de que a arte negra está muito ligada a representação do corpo, ou que é indenitária. Quando na verdade, para a humanidade a representação do corpo é um dos motivos mais explorados em qualquer cultura.
Tal crítica é infundada também, pois os nomes mais representativos da arte afro-brasileira antes de Rosana Paulino eram voltado a geometria e abstracionismo. Como Emanuel Araújo, Mestre Didi e Rubens Valentim.
A partir de Rosana que outros artistas contemporâneos, também incomodados com o sistema racista da história da arte brasileira, vão utilizar representação figurativa como forma de evidenciar o nosso apagamento. Uma conquista do direito de nos representar como imaginamos, e não como querem que nos ver.
A libertação para uma arte afro diaspórica
Juntamente a sua produção mais conhecida e que faz parte de acervos de Museus importantes do país. Rosana sempre produziu desenhos e gravuras com um traço único com linhas vigorosas e exploração de vegetação, insetos e do corpo feminino. Porém esses trabalhos só passam a ser exibidos com o valor que eles tem, se não estou enganado, a partir da sua exposição individual na Pinacoteca de São Paulo.
Os seus trabalhos que utilizam a fotografia, transferência de imagens e colagens, sempre estão presentes nas exposições de instituições ao longo dos anos; Esta pesquisa, afro-brasileira, que comenta o brasil e o apagamento histórico do negro na nosso sociedade, sempre estão presentes nas curadorias de pessoas brancas. Porém seus desenhos e esculturas eram mais raras de serem vistas até pouco tempo.
Em seus desenhos e gravuras, Rosana explora uma construção de imagens de uma artistas afrodiaspórica, em que o foco não é o Brasil ou o que a colonização fez de nossos corpos, mas de inquietações e dilemas de um ser humano, que não por acaso é uma mulher negra. Seu corpo racializado e sua existência enquanto mulher numa sociedade racista e machista são determinantes para as imagens que Paulino cria, porém por seu tratamento técnico, escolhas representativas, ela coloca no papel imagens inquietantes e propositoras de discussões que vão além das mazelas coloniais ou raciais.
Utilizando o repertório simbólico construído pela branquitude à custa da colonização e escravização de pessoas negras, Paulino busca discutir sua humanidade, e sua existência enquanto um ser humano especifico, mas que pode ser reconhecido por outros. Ou seja, o trabalho maior do artista em si, compartilhar com o mundo suas impressões da realidade que o cerca e o constrói.
Esse caminho apontado por Rosana é um passo além da arte afro-brasileira, que liga a história de pessoas negras apenas ao crime da escravidão. A arte da Afro diáspora, aponta para essa reconstrução desse sujeito transplantado através do oceano. Com suas suturas, mas que não se tornou apenas o que queriam fazer dele. A partir do resgate de fragmentos do que seus ancestrais deixaram, esse sujeito se refaz com o objetivo de construir novos simbolismos para as próximas gerações, sugerir novos caminhos para serem investigados.
As mulheres mangue na 35ª Bienal de São Paulo
A 35ª Bienal de São Paulo com certeza vai deixar sua marca na história da instituição, A “Coreografias do Impossível” trouxe as criações artísticas de diversas culturas não brancas para um espaço que foi historicamente simbolo da supremacia branca e embranquecimento da identidade brasileira.
Dentro dos diversos trabalhos da mostra, a escolha das obras de Rosana Paulino me emocionaram de forma que não estava preparado. Assim como Rosana despertou em mim o pensamento de ser um artista negro, agora, ela apontava os próximos passos para nós, novos artistas, e propõe uma nova abordagem dessa produção da afro-diáspora.
Como já disse, a obra “Parede da memória” utiliza da apropriação de imagens e a presença da fotografia para constranger a branquitude, ao mesmo tempo que ressignifica e resgata simbolismos criando uma memória cultural da existência e resistência das pessoas negras na história da arte afro-brasileira.
Porém a sala com as pinturas “Mulheres Mangue” não é limitada pela discussão racial, ou do colonialismo. É uma obra livre, onde a artista pode discutir a humanidade e singularidades de uma mulher negra, resgatar elementos simbólicos ancestrais e criar imagens potentes para as novas gerações.
O primeiro movimento de Paulino é utilizar a Tela de pintura. Suporte carregado de poder simbólico pela história da arte europeia. O segundo movimento – o tamanho destas telas. Veja, durante toda sua carreira, Rosana se preocupa com o suporte de suas imagens e os materiais que utiliza. Assim como escolheu o tamanho de pequeno e médio porte. Criações modulares, que permitem uma adaptação de transporte, montagem e de adequação de espaço expositivo.
Logo, a escolha de telas de grande porte, demonstra que Paulino destina aquelas pinturas para espaços da arte específicos – Grandes mostras e grandes museus. Ela também está reivindicando o mesmo local de grandes pintores acadêmicos, que construíam suas alegorias e reinvenções históricas de grande porte para palácios da nobreza.
O terceiro movimento é que Rosana explora o seu desenho na tela, mantendo suas linhas, manchas e gestual que utiliza no papel.
Por último, sua composição, construção figurativa e referências simbólicas são de matrizes africanas. As mulheres mangues são uma construção de uma artista africana da diáspora que está produzindo não para incomodar ou criar um constrangimento da branquitude, mas para exaltar e enriquecer o repertório simbólico imagético de pessoas negras de todo o mundo.
Seu trabalho é um devir da liberdade de pessoas negras em um futuro que buscamos. Onde não somos fadados a discutir o racismo ou as consequências coloniais. Mas exaltando nossa sabedoria ancestral e deixando para as próximas gerações nosso conhecimentos adquiridos, como faziam os Griots. A sonhada liberdade de trazer encantamento, de discutir as dores e alegrias da vida que não são consequências de um trauma marcado por um período histórico mínimo diante da vastidão da nossa existência. Que passeiam por um antes, e vislumbram um depois infinito.
O artista e curador Claudinei Roberto, conta em uma palestra sobre o Sidney Amaral que ao ver o políptico “Incômodo” do artista, Rosana profere que a obra parece muito celebrativa e que parece que a gente já venceu. Segundo Claudinei essa fala reverbera em Amaral e ele estava trabalhando em um desdobramento desse trabalho antes de morrer.
Ao mesmo tempo, imagino, esse devir do vencer, pode ter reverberado também em Paulino, e quem sabe, as mulheres Mangues seja um meio termo desse sentimento.
Exposição 10 Faces: do traço a cor
Mostra reúne retratos de diferentes pesquisas com o tema da beleza negra.
Olá amigos, ano começa com muito trabalho e exposições. Dessa vez o convite veio do Projeto 29 Cultural promovido pelo Cartório 29ª da região de Moema. A Tabeliã Priscila Agapito abre seu espaço para mostras. Assim promover um ambiente mais rico para seus clientes e fomentar a cultura.
Com ajuda de montagem e curadoria da artista Gi Archanjo, um lugar que geralmente é sério e monótono, criva vida com a arte de novos artistas.
Diante de uma oportunidade tão especial, decidi reunir algumas pesquisas ainda em desenvolvimento e recuperar algumas ideias que ficaram no caminho.
Dessa seleção é que ficaram os 10 trabalhos que vou levar para a mostra que tem a abertura programada para 19 de fevereiro, ficando em cartaz até 31 de março.
Saindo de retratos com lápis grafite, passando pelos nanquins com uma ideia afrofuturista e chegando aos retratos de guache, onde a cor da pele negra é o maior o meu interesse maior.
10 faces são perguntas que venho me fazendo em busca de uma ancestralidade, representatividade e apropriação de uma visualidade que tenta fugir do padrão eurocêntrico, e tenta beber na observação do povo negro no mundo atual e em realidades fictícias.
Sinto que ainda tenho muito que aprender e pesquisar para chegar em uma resposta e novos caminhos para minha produção. É importante dizer para mim mesmo que as perguntas estão sendo feitas. Melhor ainda é poder compartilhar esse caminho com outras pessoas.
Serviço:
Exposição 10 Faces: do traço a cor
De 19/2 até 31/03
Onde: 29º Tabelionato de Notas da Capital
Endereço: Alameda Jauaperi, 515 – Moema – São Paulo