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Encanto: Artevivência da Afro-diáspora

Exposição “Encanto: Artevivência da Afro-Diáspora” Celebrando a Herança Cultural Africana na Arte Contemporânea

A mostra reúne pinturas, objetos, esculturas de 7 artistas, sendo três nascidos em Suzano e 4 da grande São Paulo. Em contextos com as grandes mostras do ano como as “Dos Brasis”, “Mãos – 35 anos da mão afro-brasileira” e a “35ª Bienal de São Paulo”.

Investigando diferentes técnicas incluindo pinturas a óleo, acrílica, giz pastel e até impressões digitais em materiais não convencionais como azulejo e banner. As obras mostram uma variedades de pensamentos, passando por abstracionismo, realismo, apropriação, aplicação de crochê, costura, e colagem de objetos

No meio de outubro, fui chamado para fazer uma exposição em Suzano, cidade onde nasci e lecionei no ensino fundamental por seis anos. O convite veio pelos anos que convivi e estive em conversa com a secretaria de cultura e discussões com os artistas locais.

Com a oportunidade se fazer uma curadoria, ou uma individual, escolhi a primeira opção e aproveitei os cursos e contatos artísticos que fui desenvolvendo ao longo do ano para compor a mostra.

Aline Baliberdin – Katia Souza – Ailarrubi – Diogo Nógue – Beré Magalhães – Daniel Ramos – Elidayana Alexandrino – Bruno Marcitelli

A primeira curadoria

Foi muito interessante pensar o papel da curadoria e exercitar uma proposta de pensamento sobre arte utilizando o trabalho de colegas contemporâneos para ilustrar esse pensamento.

Como artista independente, fui meu próprio curador em diferentes montagens das minhas individuais. E sem duvida, é mais simples desenhar a linha de discurso dos nossos próprios trabalhos. Com a tarefa de buscar artistas que se assemelhassem ao questionamento que ando formulando sobre o que é a arte no contexto atual e como ser um artista negro, escolhi um dos pontos que mais me instigam atualmente. A relação da construção de pensamento da realidade a partir da experiência da diáspora e a busca pelas filosofias epistêmicas africanas que resistiram nesse território.

Nesta minha hipótese, uma das formas de apagamento e dominação das populações negras, foi a negação de seu intelecto e suas construções de realidade, que se davam muito pela relação animista com elementos da natureza. Uma dessas vertentes está sem duvida nas relações sagradas e espirituais que regem o trato com a natureza, objetos fetiche.

Outro resquício dessa epistemologia é a formação de rodas. estar em roda é um ensinamento ancestral que chegou até nós em várias manifestações.

E a terceira é a relação com o alimento e a troca com a terra, essa conversa com o território.

A validação da realidade pela comunidade

Uma outra linha de pensamento que trago para essa mostra é a percepção que enquanto pessoa negra vivendo em uma realidade racista, a minha existência foi moldada para a vida de outras pessoas, negando a minha. A sociedade ensina a pessoas negras que elas tem um lugar determinado, fora do caminho das pessoas brancas, apenas a servindo. E que neste mundo somos inferiores, sem alma, não humanos, e o apagamento da nossa existência se deu por meio da religião católica, das pseudociências racistas e pela usurpação da autoria e criação de tecnologias negras.

Esse processo cria para nós uma realidade paralela, onde existe um véu separando nosso mundo do mundo dos brancos. Em alguns momentos e em alguns países esse véu se tornou uma barreira real, como o apartheid norte americano e Sul africano. Ou as periferias e favelas aqui no Brasil.

Dessas reflexões, criei o texto de parede para a mostra, que vocês podem ler abaixo.

Encanto: Artevivência da Afro-diáspora

A escritora Conceição Evaristo, para definir sua vasta e rica produção literária, vai cunhar o termo “Escrevivência” que define como: “não é a escrita de si, porque esta se esgota no próprio sujeito. Ela carrega a vivência da coletividade.”

Embora cada um de nós, individualmente, absorva o mundo de um jeito único, pelos nossos sentidos. A noção de realidade precisa ser construída no coletivo. 
Assim, vai depender do contexto de uma comunidade e a partir dos parâmetros que esse grupo estabelece para se definir o “verdadeiro”.
Vivendo neste território que chamamos atualmente de Brasil, a existência e leitura de mundo de pessoas negras e indígenas sempre foi invalidada, e ainda mais, demonizada.
Ainda hoje em nossas escolas, na mídia, e nas produções culturais lideradas pelos descendentes dos colonizadores, se aprende a ler o mundo pela perspectiva europeia e cristã. E todo conhecimento fora desse espectro é diminuído ou descartado.
Existe uma relutância em se ver e aceitar qualquer aspecto das culturas Afro, porém a que é mais ultrajada e violentada é a ligação entre a Magia/Encanto e o corpo africano. Sobrevivendo, entretanto, em meio às ciências positivistas que estampam a bandeira, às pseudociências racistas e ao racismo religioso, encontramos outras maneiras de compreender e interpretar a vida.

Em paralelo a uma realidade imposta e suturada por violências como traduz muito bem Rosana Paulino em suas obras. 
A arte consegue compartilhar singularidades e formas de apreender o mundo ao redor. Deslocando e tornando estranho o que achamos comum e verdadeiro, tirando o véu da conformidade que cobre nossa visão. 
Por muito tempo, mesmo a contragosto, as manifestações desses artistas negros foram nichadas e rebaixadas como arte ingênua, arte popular, artesanato e folclore. Mesmo pulsando com vigor na música, dança, festas e no fazer de roupas, pinturas, instrumentos e alegorias.
Mas nós, artistas negros, estamos há muito tempo lutando pelo território simbólico que a arte europeia ergueu a custa da escravização, morte dos nossos antepassados e colonização dos outros continentes. 
Nossa artevivência resiste e, através de uma arqueologia das  filosofias e tecnologias negras, nos conta dessa ligação ancestral da natureza e do mistério de caminhar no mundo.
Reconstruindo, pintando, desenhando, esculpindo, cantando e performando nosso lugar no mundo. Rasgamos o véu que nos separa dessa realidade que nos apaga. Em comunidade (en)cantamos “nós existimos e somos importantes”. 

Artistas Convidados

Participam da mostra os artistas Ailarrubi – utiliza a pintura em tela como uma forma de buscar a permanência das imagens que a tradição europeia criou, porém utilizando a mitologia de terreiro e até jogos de búzios para produzir suas imagens. Beré Magalhães também utiliza a mitologia africana, porém busca uma abordagem do expressionismo abstrato, arte naif e a abstração para compor seus desenhos e pinturas. Daniel Ramos por outro lado, utiliza aplicação de bordado, colagens de objetos como búzios, fotografias e outros tecidos no corpo de suas pinturas. Elidayana Alexandrino investiga o autorretrato, a composição com a fotografia e pintura digital explorando repetição da imagem e espelhamentos, buscando composições inusitadas e a impressão dessas imagens em azulejos, resgatando e re-imaginando a tradição de contar histórias nas cerâmicas portuguesas, mas dessa vez com sua própria história, sendo protagonista. Já May Agontinmé promove uma restauração ancestral, se apropriando de objetos e imagens de santos e entidades que foram sincretizadas entre o catolicismo a umbanda e candomblé e traz para a superfície com o crochê e colagens de tecidos as imagens de orixás negros.

Todos eles com alguma investigação da relação da negritude com a ancestralidade e busca do mágico, do encanto e da mitologia de povos, fon, Youruba e Bantu. Buscando também uma exploração da própria identidade diante disso e buscando a chave das potências.

Além disso a abertura contou com Katia Souza – Terapeuta naturalista vegana, massoterapeuta, guardiã da medicina placentária, alquimista, Doula, Parteira, Capoeirista, cozinheira, e oficineira. Levando o alimento como parte desse conhecimento ancestral, e também como energia vital que nos trouxe até aqui. Foi parte essencial na abertura e celebração desse momento.

Reivindicando o sagrado espaço da arte para todas as nossas potências. também tivemos a música de artistas da diáspora tocando durante o evento.

Suzano

Apesar de não ressaltar em sua história a contribuição negra de forma efusiva, ela é muito importante para esse território, assim como as comunidades indígenas que foram invadidas, mas que deixaram suas marcas na história.

Apesar de eu ter nascido em Suzano, na época, morava na divisa entre São Paulo e Poá, o bairro chamado Cidade Kemel, por esse motivo, a maternidade de Suzano era uma das mais próximas. Minha mãe conta que o parto foi muito dificil, e que ela passou por violências pesadas, como a enfermeira dizendo que ela tinha que empurrar mais forte se não o bebe morreria, e seria culpa dela. Até mesmo subirem e apertarem sua barriga durante o trabalho de parto. Mostrando como o racismo e violência contra corpos negros atravessam todos os momentos de nossas vidas.

Uma das formas de discutir a herança africana nesse território foi com o instalação “Composição – Uruçu – Iemanjá – Adupé” que criei comprando objetos de lojas de artigos religiosos que estão na cidade, em volta do Centro de Cultura. Trazendo a circularidade novamente, as tigelas de oferendas, velas, ervas, e elementos como a água, argila, cachaça, mel e palha. As cores de Exu, Iemanjá e Nanã. Reflito sobre essa cultura e conhecimentos ancestrais que passam por baixo da realidade vigente. De uma cidade conservadora, em que os cristãos fundamentalistas protestantes dominam o pensamento de muitas famílias da região. Mas que ainda guarda muita força das matrizes africanas com terreiros e outras manifestações afro no local.

Localização: Centro de Educação e Cultura Francisco Carlos Moriconi –  R. Benjamin Constant, 682 
Horário: das 8h as 19h – Seg a Sab.
Entrada: Gratuita

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